segunda-feira, 23 de maio de 2011

Eu sei, mas não devia

Eu sei que a gente se acostuma, mas devia.....


A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, o ar, e esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A comer sanduíche porque não dá tempo para almoçar.

A sair do trabalho porque já é noite. A deitar cedo e dormir sem ter vivido a vida.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos. E, aceitando os números, não acredita nas negociações de paz.

E, não acreditando as negociações de paz, aceita ter, todo dia, o dia-a-dia da guerra, dos números de longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que se deseja e o de que se necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com o que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E saber que cada vez pagará mais.

E a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma à poluição. À sala fechada de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às baterias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios.

A gente se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo na madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor daqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.

Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo, conformado. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no final de semana. E, se no fim da semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e fica satisfeito, porque, afinal, está sempre com o sono atrasado.

A gente se acostuma a não ter que se ralar na aspereza, para preservar a pele. A gente se acostuma a evitar feridas, sangramentos, para se esquivar da faca e da baioneta, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que gasta de tanto se acostumar, se perde em si mesma.


O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", de Marina Colasanti, Editora Rocco - 1996, página 09.

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